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A Doutrina e a recepção (iniciação)

no Rito Escocês Retificado

Antes de falarmos sobre o tema da Doutrina e da recepção no RER, gostaria de esclarecer um falso problema. Existem maçons, os encontro diariamente e sempre que trato do assunto, que se perturbam ao ouvir mencionar a existência de uma doutrina na Maçonaria, e até mesmo negam veementemente aceitar tal ideia. O que acontece é que esses bons Irmãos desconhecem o verdadeiro significado desse termo, que confundem erroneamente com o dogma. Vamos ver, o que significa a palavra doutrina?

Vamos consultar um bom dicionário de latim.

Doutrina significa:

1.         ensino, formação teórica;

2.         arte, ciência, teoria, método.

A palavra doutrina está em relação etimológica com o verbo doceo, “ensinar”. A doutrina é o que é ensinado por um doutor, um mestre, um professor, àquela pessoa que, graças a isso, se tornará doctus, instruído, sábio. Agora bem, como age a Maçonaria? É evidente que por meio da iniciação, mas ao mesmo tempo por meio do ensino. Toda a Maçonaria é composta de ensinamentos. E especialmente a Maçonaria Retificada, na qual esse ensinamento é, de certa forma, o fio condutor que guia seus membros ao longo de sua jornada Iniciática. O ensino aqui dispensado tem uma natureza particular.

Os diversos sistemas ou Ritos maçônicos não são mesquinhos em ensinamentos na forma de advertências e conselhos relativos ao comportamento moral, social e às vezes religioso de seus membros: um exemplo típico disso são as exortações do Rito de Emulação. Naturalmente, isso também é encontrado na Retificada. Mas há mais uma coisa.

A Retificada apresenta a particularidade destacável e provavelmente única de possuir uma doutrina própria da iniciação, explicitamente formulada e metodicamente ensinada, grau por grau. Dessa forma, ao mesmo tempo em que faz com que seus membros avancem pelo caminho da iniciação, lhes transmite um ensinamento teórico na forma de discurso pedagógico relacionado a essa mesma iniciação.

Esse ensino é dado nas Instruções redigidas ne varietur, que marcam os sucessivos graus e que estão incluídas nos Ritos destes últimos. E sua leitura é indispensável, pois de outra maneira, como poderia informar-se dessa doutrina que se expõe, primeiro conhecendo sua existência, e depois, de forma progressiva, assimilando-a? Prescindir dessa leitura equivaleria, para um professor de uma escola ou instituto, a ignorar os programas de estudos e explicar aos seus alunos o que lhe viesse à mente em primeiro lugar.

É também absolutamente essencial que esta doutrina – longe de ser apenas um objeto de curiosidade retrospectiva, uma espécie de raridade – tenha para cada um de nós um interesse direto e sempre atual.

Com efeito, esse ensino sobre a natureza e a história da iniciação é indissociável de um ensino sobre a natureza do homem e de sua história – deixando bem claro que essa história que narra o Regime não é a dos fatos da civilização, por exemplo, a história da arquitetura ou da arte da geometria, como nas “Old Charges” ou mesmo nas Constituições de Anderson; é a de sua condição, para usar uma expressão de André Malraux, ou seja, com mais precisão, as peripécias que afetaram essa condição por causa e como consequência das mutações registradas no próprio ser humano. Em uma palavra, é uma história ontológica, uma história metafísica, ao mesmo tempo que física.

Desde que as ideias de René Guénon afetaram até mesmo aqueles que não as leram, isso parece evidente. Mas, acredite em mim, no século XVIII isso era uma primícia, como diriam hoje os jornalistas.

Não há dúvida de que qualquer homem impregnado da cultura cristã está imbuido pela ideia da queda do homem, transmitida pela religião judaica à cristã, já que é disso que se trata. Mas creio não errar ao afirmar que era a primeira vez que uma relação necessária era estabelecida entre a queda do homem e a elaboração do processo Iniciático.

As quatro lições da doutrina retificada

Qual é o ensinamento do que, para abreviar, chamaremos de Doutrina Retificada?

Primeiro: O ser humano foi criado à imagem e semelhança divinas, e em seu estado primitivo glorioso, que lhe era próprio, desfrutava da imortalidade e da beatitude perfeita porque estava em comunhão direta e constante com o Criador, em unidade com ele, como afirmam nossos textos. Isso é o que expressa o adjetivo glorioso, que deve ser interpretado no amplo sentido em que aparece nas Escrituras, onde a glória manifesta a presença imediata e luminosa de Deus. (Dito de passagem, na Maçonaria, a palavra glória tem esse sentido: para todo maçom, trabalhar para a Glória do Grande Arquiteto do Universo é trabalhar na presença do Deus Criador.)

O primeiro homem, revestido com a luz divina, ou seja, participando das virtudes e poderes que estão na essência divina (o que a teologia cristã oriental chama de energias não criadas), participando sem ser ele mesmo (isso é muito importante) da essência divina, tinha como destino ser o rei deste universo criado por Deus.

Segundo: Este homem, por decisão de sua livre vontade, se desviou e se separou de seu Criador, e caiu. E, consequentemente, perdeu a semelhança divina. No entanto, a imagem divina subsiste nele inalterada, porque a marca de Deus é inalterável.

Essa imagem está deformada, se tornou algo anômalo, e isso é o que simboliza a passagem do Oriente para o Ocidente, da luz às trevas, da unidade à multiplicidade: Adão expulso daquele lugar de luz e de paz total (paz profunda) que era o Paraíso terrestre; ele entendeu bem que o Paraíso terrestre não era realmente um lugar, mas sim um estado de ser.

Este homem, separado de sua origem, que é Deus, de seu verdadeiro Oriente, é chamado por Willermoz, sob a influência de Martínez de Pasqually, de homem em privação. E trata-se de uma privação absoluta. Isso acarreta um duplo castigo, castigo exigido pela justiça divina, mas ao qual o próprio homem se condenou.

O primeiro é que o homem não está em unidade com Deus, em comunicação imediata e constante com Ele. Isso é o que nossos textos designam como a morte intelectual, tendo em mente que na linguagem da época, intelectual significava espiritual, incorpóreo; nós diríamos agora que o homem caído está em estado de morte espiritual.

Mas ele sofreu também um segundo castigo. A mutação ontológica radical que a queda do homem provocou nele também se manifesta pelo fato de que o corpo glorioso com que estava inicialmente revestido, corpo de luz, corpo espiritual, como diria Henry Corbin, transformou-se em um corpo de matéria sujeito à corrupção e à morte.

Assim, condenado à morte espiritual, ele também está condenado à morte corporal.

Nesse estado e daqui para frente, o homem está dotado de uma dupla natureza: sua natureza espiritual, pela qual ele continua sendo imagem de Deus, e que ele preservou; e a natureza animal corporal, que lhe valeu sua queda e o assemelha aos animais terrestres.

E ele é vítima, por isso, de tormentos horríveis. Como ser espiritual, aspirando por sua própria natureza à unidade com Deus, ele sofre indizivelmente por sua separação d’Ele. Como ser animal, ele se tornou escravo de suas sensações e necessidades físicas e brinquedo das forças e elementos materiais. Enfim, como ser dual, ao mesmo tempo espiritual e animal, ele está dilacerado e como despedaçado pelo antagonismo entre as aspirações e tendências contrárias de suas duas naturezas.

Assim é trágica a condição do ser humano.

Terceiro: No entanto, o Regime Retificado nos ensina que essa privação absoluta, que se tornou, de acordo com a justiça divina, definitiva, na verdade não o será devido à intervenção da misericórdia ou clemência divina, que surge no momento em que o homem se arrepende. Agora, arrepender-se é se reencontrar, é se recuperar, afastar-se das trevas e voltar a enfrentar o Oriente, onde está a Luz. É colocar-se na posição de ascender às suas fontes, à sua origem.

Nesse momento é quando o trabalho da iniciação é verdadeiramente possível. Pois a iniciação é um dos meios utilizados pela misericórdia divina – e isso, desde o momento da queda – para permitir que o homem recupere seu estado original, restaurando nele a semelhança com a imagem divina, restaurando nele a conformidade do tipo com o protótipo, do homem a Deus.

Nossos textos são, neste ponto, absolutamente rigorosos: Se o homem tivesse permanecido na pureza de sua primeira origem, a iniciação não teria existido para ele, e a verdade se mostraria sem se esconder de sua visão, já que ele teria nascido para contemplá-la e prestar-lhe homenagem contínua (…)

A Maçonaria bem meditada faz com que vocês pensem, incessantemente e por todos os meios possíveis, em sua própria natureza essencial. (…)

Ela busca constantemente maneiras de fazer vocês conhecerem a origem do homem, seu destino primitivo, sua queda, os males consequentes e os recursos que a bondade divina disponibilizou para superá-los (…)

Por esta razão, é afirmado enfaticamente que o verdadeiro e único objetivo das iniciações é preparar os iniciados para descobrir o único caminho que pode levar o ser humano ao seu estado primitivo e devolver-lhe os direitos perdidos. Esta afirmação pode ser comparada àquela outra, de Louis-Claude de Saint Martin (discípulo, assim como Willermoz, de Martínez de Pasqually), segundo a qual o objetivo da iniciação é eliminar a distância entre a Luz e o homem, ou aproximá-lo de sua origem, restaurando-o ao estado em que estava no princípio.

Agora pode-se entender bem qual é essa união necessária entre a queda do homem e a iniciação à qual nos referimos anteriormente. A iniciação é uma consequência da queda; uma consequência não fatal, mas providencial; não forçada, mas desejada pela misericórdia divina para contrariar a queda e anular seus efeitos.

É um auxílio da Providência para o ser humano, que nunca lhe faltou ao longo de sua história, e por essa razão as formas sucessivas que a iniciação adotou ao longo dos tempos – e a Maçonaria é uma delas – estiveram relacionadas com as vicissitudes temporais do homem, que incessantemente oscila entre a queda e o arrependimento.

Também pode-se compreender, ao mesmo tempo, não apenas a utilidade, mas a necessidade de um ensinamento conectado com a iniciação. Seu objetivo é fazer o homem consciente, por um lado, de seu estado presente e, por outro, de seu estado primordial, do qual pode voltar a se recuperar. O objetivo é evidente: produzir no homem – no iniciado – uma mudança de estado de consciência, de modo a tornar possível a mudança de estado do ser que deve realizar o trabalho Iniciático. Ambos, estado de consciência e estado do ser, estão ligados.

Este e não outro é o significado da proposta de Joseph de Maistre em sua Memória ao Duque de Brunswick:

O grande objetivo da Maçonaria será a ciência do homem.

Se os rituais dos graus sucessivos do Regime e as instruções que comportam forem lidos agora, com a perspectiva que acabamos de traçar, descobrir-se-á que a ação ritual se desenvolve simultaneamente e de forma contínua, tanto de grau em grau como dentro de cada grau, e isso desde o grau de aprendiz, em três planos em constante correspondência: passado, presente e futuro; a origem e o destino primitivos do homem, seu estado atual, seus objetivos finais; o homem primitivo glorioso, o homem presente decepcionado e o homem futuro restituído à sua glória.

Por este motivo, o Rito trata sobre o tema da construção do templo, de sua destruição e sua reconstrução, que é a transposição, no plano da construção, do tema da semelhança da imagem, sucessivamente perdida e depois recuperada, pois em última análise o templo não é outra coisa senão o homem.

Etapa após etapa, de acordo com uma progressão pedagógica perfeitamente disposta, as instruções fornecem um ensinamento cada vez mais elevado e, simultaneamente, lembram, aprofundando-o, o ensinamento previamente fornecido.

Mas que ninguém se engane, pois tudo está indicado desde o início. Assim, àquele que ainda não é aprendiz, mas um candidato submetido aos testes preliminares à sua recepção, é dada a primeira máxima da Ordem, máxima que ele terá que meditar durante toda a sua vida:

O homem é a imagem imortal de Deus, mas quem poderá reconhecê-la se ele mesmo a desfigura?

Além disso, a Regra Maçônica, que é entregue a todos os Aprendizes para ser estudada, adverte:

Se as lições que a Ordem oferece para facilitar o seu caminho para a verdade e a felicidade forem profundamente gravadas em sua alma […]; se os máximos saudáveis, que marcam, por assim dizer, cada passo que você der em sua carreira maçônica, tornarem-se seus próprios princípios e a regra invariável de suas ações, Ó meu Irmão (…)!, você cumprirá com seu sublime destino, recuperará essa semelhança divina, que fazia parte do homem em seu estado de inocência, que é o objetivo do Cristianismo, e do qual a iniciação Maçônica faz seu objeto principal

Agora, portanto, pode-se compreender até que ponto é grave negligenciar as instruções fundamentais que a Ordem nos dá.

Quarto: Existe um quarto ensinamento, que é o mais essencial de todos. Pode o homem realizar por si próprio esta restauração, esta reintegração em seu estado primitivo e nos direitos que perdeu? Não, de modo algum. Seria, da parte dele, cometer uma empresa orgulhosa semelhante à que provocou sua queda original.

Esta reintegração, ou seja, este retorno à integridade original, exige a mediação de um ser que, à semelhança do homem, esteja dotado de uma dupla natureza, de uma parte espiritual e de outra corporal. No entanto, ao contrário do homem atual, cujas duas naturezas estão corrompidas pela queda, ambas as naturezas nesse ser estão em estado de pureza, inocência e perfeição gloriosa, como estavam inicialmente no homem. Agora se entenderá de quem se trata e quem é aquele a quem nossos textos chamam de Mediador Divino. Eles são, em relação à sua identidade, perfeitamente claros:

(…) Todas as relações entre a misericórdia divina e os culpados haviam sido aniquiladas e a desgraça atual do homem seria inexplicável se esta misericórdia não tivesse empregado um tônico infinitamente poderoso para levantar o homem de sua funesta queda e colocá-lo novamente em seu primeiro destino.

Não se ignorará qual foi este tônico. Na verdade, quem mais além de um ser que não seja Deus, que participe de sua essência, poderia acorrentar o poder daquele que havia subjugado o homem?

Imediatamente após o crime do homem, este agente poderoso veio manifestar sua ação vitoriosa sobre os culpados no templo universal; ele a manifestou especialmente no tempo em favor da posteridade do homem e para a vergonha de seu inimigo, unindo sua divindade à humanidade; enfim, ele não cessa de manifestá-la em todos os cantos do universo.

Eis, meu caro irmão, os auxílios divinos e eficazes que o homem, através de seu arrependimento, transmite à sua posteridade e dos quais ninguém pode participar se não agir em nome e em unidade com este Agente reconciliador universal que é Cristo.

Eis por que, ao final da iniciação maçônica, o que o Regime Retificado oferece para que seus membros contemplem não é um renascimento, mas uma ressurreição.

Uma observação. Revelar ao término da iniciação a ressurreição de Cristo não é exclusivo do Regime Retificado; isso também é encontrado em outros sistemas, tanto nos franceses quanto nos ingleses. A particularidade deste Regime reside, no entanto, em incluí-lo em uma perspectiva metafísica e ontológica coerente, forte e aplicável concretamente ao ser humano.

Eis também por que, uma vez chegados a este ponto, o templo sucessivamente construído, destruído e reconstruído desaparece, assim como o templo de Salomão desapareceu, e por que o objetivo final é a Jerusalém Celestial, a Cidade Santa onde já não há templo pois, como é dito no Apocalipse (21-22), o Senhor Todo-Poderoso é o Templo, assim como o Cordeiro.

Na verdade, não se esqueça, o templo que nos concerne verdadeiramente é o ser humano. O último objetivo do ser humano é a identificação com o “templo não feito por mãos humanas”: o Cristo ressuscitado.

Por fim, esta é a razão pela qual a Ordem é cristã, e não apenas impregnada de um cristianismo vago. Por isso só pode admitir cristãos, ou seja, pessoas que professam a fé em Cristo. Esta seleção, ou esta escolha – como preferir – não obedecem a nenhum outro motivo além da necessidade metafísica mencionada anteriormente.

Porque a iniciação, como concebida por Willermoz, segundo os ensinamentos de Martínez, e que nos foi legada, não funciona e não pode funcionar de outra maneira; e, usando uma passagem já citada, constitui um auxílio divino e eficaz no qual ninguém pode participar se não agir em nome e em unidade com este Agente reconciliador universal que é Cristo.

Agora, como pode alguém agir em nome e em unidade com Cristo se não tiver fé nele?

Esta é a esoterismo cristã que os maçons Retificados vivem. Eis como o Regime Retificado entende a iniciação há mais de dois séculos, e isso é colocado em prática. Claro que eu adiro a este conceito, e por isso sou maçom Retificado e, agora, não mais por acaso, mas por convicção. Obviamente, não se pretende fazer disso um modelo universal, um molde ao qual todos os maçons devem se adaptar obrigatoriamente, e não ignoramos as dificuldades que isso possa representar para os não-cristãos.

Dificuldades que não devem ser superestimadas, já que, por outro lado, afinal de contas, o Regime só legisla para seus membros, e todos são livres para entrar ou não nele. Este tem sido sempre o caso desde os tempos de Willermoz até hoje. Mas, se entrar nele, é bom saber ao que se está comprometendo.

O que se pode afirmar, por experiência própria, é que esta doutrina da iniciação maçônica, intrinsecamente ligada à natureza e ao destino do ser humano, em perfeito acordo com o Cristianismo que lhe é inerente, permite àquele que se adere a ela viver a plenitude do processo Iniciático na plenitude da fé. E esta harmonia perfeita é fonte de grandes alegrias

NOTAS:

1.         Código Masónico de las Logias Reunidas y Rectificadas y el Código General de los Reglamentos de la Orden de los Caballeros Bienhechores de la Ciudad Santa, “C.B.C.S.)”, de 1778.

2.         Tenemos la suerte de disponer en castellano del texto del manuscrito Regius, que data de 1390. Traducción del R. H. Santiago Ansaldo publicada en el Libro de Trabajos de 1996-1997 de la Logia de Estudios e Investigaciones Duque de Wharton, N.º 18.

3.      Artículo publicado en el “Libro de Trabajos de la Logia de Estudios e Investigaciones Duque de Wharton” 1998-1999, Arola Editors, Tarragona, 1999

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