Guy Verval
O Rito Retificado é algumas vezes apresentado, na Maçonaria contemporânea, como a ponta-de-lança de um certo fundamentalismo cristão, que não quer dizer católico, contrário aos princípios universais da Maçonaria regular. Esta é uma questão capital que não pode ser negligenciada e que merece uma análise precisa.
Mas é necessário ressaltar de imediato o fato de que este problema se insere, em outro bem mais vasto, que é o do cristianismo da Maçonaria em geral, assunto que frequentemente tem sido tratado de maneira inadequada, senão tendenciosa. A tese mais difundida é simples: a Maçonaria operativa era cristã, por razões sociológicas evidentes, mas sua transformação em uma organização apontada como especulativa, veio acompanhada de uma descristianização radical, abrindo a porta das Lojas a todos, até aos ateus, desde que não fossem estúpidos (tese sobre as Maçonarias Latinas, insustentável sob todos os aspectos) ou para todos os crentes, sem distinção de confissão religiosa (posição das Obediências regulares contemporâneas, entre elas as que trabalham no R∴E∴R∴ ).
As constituições de Anderson de 1723 seriam o ponto de passagem entre a Maçonaria operativa “cristã” e a Maçonaria especulativa “não confessional”.
Esta tese se apoia na análise do primeiro artigo das constituições de 1723, “Sobre Deus e a Religião”. Estas constituições são, como se sabe, uma compilação das “Old Charges” (“Antigos Deveres”), documentos usados na Maçonaria operativa inglesa, que começam por uma invocação à Santa Trindade. Anderson omite esta invocação e estipula, neste primeiro artigo, que “se considera mais adequado obrigá-los (os maçons) somente àquela religião com a qual todos os homens concordam, quer dizer, serem pessoasde bem e leais …”. Isto é suficiente para afirmar que os fundadores de 1717 rompiam com uma tradição cristã da Maçonaria operativa? Não pensamos assim, porque a leitura atenta de todo o texto contradiz esta interpretação. Além disso, a omissão da fórmula trinitária pelo pastor não é suficiente para afirmar a adesão à “religião natural”.
Se na Idade Média, todos os textos, inclusive os profanos, começaram por uma fórmula deste tipo, o mesmo não aconteceu no século XVIII. O espírito da época tinha mudado! A manutenção da invocação nos textos maçônicos do século XVII e mesmo no século XVIII (Ver as Constituições de Roberts de 1722, em P. Noël, 1983) só comprova o conservadorismo inglês. Mais absurdo ainda é a tese extrema daqueles que pensam que Anderson e seus amigos romperam com a tradição cristã dos Maçons ingleses do século XVII. É o mesmo que ignorar o lado fundamental da reforma anglicana. Não esqueçamos que os ingleses sempre permaneceram cristãos, mesmo e, sobretudo, após haverem rompido com Roma.
Como escreveu G. Draffen, bibliotecário da Grande Loja da Escócia (carta de 28.9.1955 citada por M. Lepage: “A Ordem e as Obediências”, pág. 88):
“…A Igreja (anglicana) é tão romana quanto Roma, salvo que: 1) ela rejeita inteiramente o Papa como chefe da Igreja; 2) ele rejeita inteiramente os dogmas ou doutrinas pelo ou após o Concílio de Trento … Os serviços religiosos da Igreja da Inglaterra têm por base a missa, e permaneceram inalterados. Por estas razões, os Maçons ingleses aceitaram as “Old Charges” porque eles representam a Igreja, tal e qual eles sempre a conheceram. A lei canônica da Igreja inglesa é a mesma lei canônica, inalterada, que vigorava em Roma em 1570 …” Por aí se vê a incompreensão dos autores franceses (Naudon, por exemplo) que estudaram o caso Anderson com seus olhos continentais. Esta atitude britânica, embora particular, permite assim a Anderson qualificar de “católica” a religião que ele descrevia no artigo primeiro:
“ … we being only, as Masons, of the Catholic Religion above mention’d; we are also of all nations, tongues, kindreds and languages, and areresolv’d against all politicks, as what never yet conduc’d to the welfare of the Lodge, nor ever will. This charge has always been strictly enjoin’d and observ’d; but especially ever since the Reformation in Britain, or the dissent and secession of these nations from the communion of Rome” (Artigo VI, parágrafo 2)
“… sendo nós apenas, como maçons, da religião católica acima mencionada; somos também de todas as nações, línguas, famílias e idiomas, e estamos decididos contra toda política, como o que nunca conduziu ao bem-estar da Loja, nem nunca conduzirá. Esta acusação sempre foi estritamente imposta e observada; mas especialmente desde a Reforma na Grã-Bretanha, ou a dissidência e secessão dessas nações da comunhão de Roma”
Não podemos dizer melhor! Anderson não hesita em qualificar de católicos os Maçons ingleses reformados. Anderson escrevia para os cristãos no contexto inglês de sua época, a do “Ato de Tolerância” promulgado por Guilherme III em 1689, que consagrava a coexistência, na Inglaterra e na Escócia, de todas as variantes da lei reformada.
Por outro lado, o RER sempre se apresentou como um rito cristão, voltado a todos os cristãos independente da comunidade cristã a qual pertençam.
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